segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O ÚLTIMO DIA

Tô postando aqui o conto que me deu o 1º lugar no Prêmio Uberaba de Literatura. Aviso logo que o texto é triste, não esperem minhas palhaçadas habituais, e eu sei que ler no PC é um porre então agradeço a paciência de quem estiver lendo esta birosca (e já que quem escrever quer ser lido, meu ego também agradece).

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Você acorda e faz tudo como sempre fez, sempre a mesma coisa, e você nunca imagina que aquela é a última vez. Como num dia qualquer você acorda e se força a abandonar o conforto da sua cama sem nem por um instante pensar que aquela vai ser a última vez que você vai sentir aquela sensação. Depois você toma um banho correndo, sente a água quente nos seus músculos, mas não pára para apreciar aquele momento porque enquanto você lava o seu cabelo as milhares de coisas que você tem que fazer durante o dia já estão fervendo no seu cérebro. Antes das nove da manhã você vai estar se consumindo com um compromisso marcado para as cinco da tarde e antes do almoço você já vai estar exausto. E enquanto você se atropela tentando fazer mil coisas ao mesmo tempo e tentando ser bom em todas elas, você nunca, nem por um segundo, pensa que aquele é seu último dia.
            Eu me lembro que era uma quinta-feira estúpida, tão ordinária como todas as quintas-feiras podem ser. Eu acordei antes do relógio despertar mas não levantei, fiquei deitado tentando voltar a dormir e por fim acabei assistindo os minutos correrem no mostrador digital. Quando finalmente aquela coisa apitou eu levantei, me espreguicei pela última vez na minha vida e fui até a sala, onde eu vi o gato.
Aquele bicho estava destruindo o meu sofá, mas de certo modo aquilo não me incomodava. A verdade é que me apeguei ao gato de um jeito que não imaginei que me apegaria quando vi aquele bicho pela primeira vez. Lembro que quando minha secretária sugeriu que eu o levasse para casa eu torci o nariz. Ela havia encontrado o gato num dia de chuva ali perto do escritório, mas não podia ficar com ele porque o filho dela é alérgico e mesmo gostando do gato não havia meio do bicho ficar na mesma casa que o moleque. Eu me lembro do seu argumento para me convencer a adotar o gato:
– Você é tão sozinho – ela disse, como se um gato fosse me tornar uma pessoa mais feliz.
            Não sei se o gato me tornou uma pessoa mais feliz. Sei que ele me fez companhia e que às vezes eu me pegava falando com ele. Nossa amizade, por assim dizer, era simples: eu alimentava, cuidava e me preocupava com o gato, e ele destruía o meu sofá e se enroscava nas minhas pernas. E agora estamos os dois no mesmo pé, sem saber o vai nos acontecer.
Às vezes eu penso que fim vai levar o gato. Talvez minha mãe leve o gato para casa dela, ou talvez um dos meus irmãos faça isso, talvez o coloquem para adoção novamente e ele vá estragar o sofá de algum estranho. E a verdade é que não importa quantos finais eu invente, eu nunca vou saber que fim levou meu gato.
            Naquela quinta-feira eu dei pela última vez bom dia para o gato, e então fui até a cozinha e fiz o mesmo ritual de todos os dias: primeiro a ração do gato, depois a minha. Era assim todo dia, enquanto o gato mastigava a ração dele do lado da pia, eu comia qualquer coisa. Minha alimentação vinha sendo um completo desastre desde o fim do meu casamento. Eu sempre fui um estranho para o fogão e venho sobrevivendo graças aos fast foods e as porcarias que infestam as prateleiras dos supermercados. Naquela quinta-feira ordinária meu café da manhã pizza amanhecida. Eu não lembro que gosto tinha aquela pizza, nem mesmo sei se ela era de calabresa ou quatro queijos, mas eu continuo lembrando a mim mesmo que no dia em que eu morri eu comi pizza amanhecida no café da manhã.
            Em seguida eu fui pro banho. Milhares de coisas passavam pela minha cabeça, eu tinha a mania de ficar repassando os meus compromissos do dia mentalmente durante o banho, como que me preparando pro dia. Morrer não estava na minha agenda, mas eu me lembro de sentir uma sensação estranha, era como se uma voz dentro da minha cabeça falasse que as coisas não estavam certas. E exatamente como quando somos crianças e não damos a mínima para os adultos quando eles falam que vamos nos resfriar se sairmos sem um agasalho ou se andarmos descalços, eu ignorei aquela voz, sem saber que mais tarde ela berraria nos meus ouvidos.
            Quando eu saí do banheiro e pisei com os pés úmidos no carpete eu não sabia que iria me arrumar para morrer. Fui até o guarda-roupa e escolhi uma camisa imaculadamente branca e uma gravata discreta. Um advogado alinhado e dali algumas horas um digno defunto. Por último dei uma última olhada no espelho e constatei mais uma vez que eu estava ficando calvo. E velho, eu estava ficando cada vez mais calvo e velho. Mas você nunca acha que é velho o suficiente para morrer.
            Antes de sair eu olhei pela última vez meu apartamento e vi que estava tudo normal. O gato afiava as unhas no sofá e eu não tinha deixado o gás ligado nem nada do tipo. Parecia tudo certo. Em cima da mesa ficou o presente que eu tinha comprado para o aniversário da minha ex-esposa. No sábado ela iria comemorar mais um ano de vida com alguns amigos na casa dela e do seu novo marido e por educação havia me convidado. E falando assim parece que nós nos odiávamos, o que não é verdade. A gente se dava bem, melhor depois do divórcio. O segredo de não transformar sua ex-mulher em inimiga mortal é tornar a coisa impessoal e não ver a felicidade dela como uma provocação, não culpá-la pelo estrago que a sua vida se transformou. Hoje ela tem uma casa espaçosa, um novo marido e filhos. Ela é feliz, acredito que seja. E eu teria ficado melhor se continuasse casado, mas na época isso não me ocorreu.
            Desci até a garagem, peguei o carro e dirigi até o escritório, não ficava muito longe de casa. Fui com o rádio desligado e com o jornal ainda dobrado sobre o banco do carona, não estava com paciência para as notícias do dia. No escritório eu cumprimentei a secretária, e como de costume ela perguntou do gato e eu respondi:
– Da última vez que o vi ele estava ótimo e destruindo meu sofá.
Ela riu. E agora me vem à mente que aquela mulher ficou desempregada depois da minha morte.
            A manhã seguiu sem grandes acontecimentos. Eu estava atolado em serviço, mas nada de excepcional, tudo dentro do que eu já estava mais do que habituado.
Devia ser por volta de dez para a uma quando saí para almoçar, e levando em consideração que eu havia marcado de visitar um cliente a uma e meia é fácil deduzir que eu comi qualquer porcaria. Se soubesse que ia morrer, que aquela seria a minha última refeição eu teria comido coisa melhor, teria cometido o pecado da gula até onde meu corpo prestes a ficar sem vida agüentasse, só com os meus pratos favoritos.
            Depois de comer correndo a porcaria qualquer eu fui ver meu último cliente que atendi na minha vidinha de advogado. Aquele era um daqueles clientes que você tem mais por consideração do que qualquer outra coisa, e tudo que ele queria era esclarecer uma dúvida sobre a compra de um terreno, qualquer coisa idiota sobre uma escritura. Eu fui visitá-lo na loja dele e não demorei nem trinta minutos lá dentro. Talvez se tivesse me demorado mais um pouco as coisas teriam sido diferente. Quer dizer, alguns detalhes poderiam ter acontecido de outra forma, mas acho que o fim seria sempre o mesmo.
Saí da loja do meu cliente depois de ter esclarecido suas dúvidas, de ter lhe dado um forte aperto de mão e ter lhe desejado tudo de bom. Fui caminhando rumo ao estacionamento onde estava meu carro, mas eu não cheguei até lá.
            De repente me veio uma dor no peito, uma pressão que queimava e ardia. Aquela voz que por algumas vezes eu me neguei a escutar estava berrando nos meus ouvidos, algo em mim estava errado, muito errado. Um rapaz que vinha caminhando na calçada na direção contrária me segurou e não me deixou cair no chão.
            – Senhor? O senhor está bem? – Eu me lembro da voz dele perguntando.
            Eu estava morrendo, literalmente e de dor. E tudo que eu consegui fazer foi balançar a cabeça. Tentei levantar, mas não consegui. Eu queria falar alguma coisa, dizer que eu estava bem, que eu já estava me recuperando, que tinha sido uma coisinha qualquer, mas não era. O rapaz me pediu para ficar calmo e gritou chamando um taxista que estava parado ali perto. A essa altura as pessoas que passavam por ali começaram a prestar atenção no meu drama, um fim um tanto quanto extravagante para a minha vidinha discreta.
            Mal o táxi estacionou o rapaz já abriu a porta e me colocou dentro do carro, disse para o motorista ir direto para o hospital mais próximo e novamente me pediu calma.
            – O senhor tem que ficar calmo, vai dar tudo certo.
Eu me lembro como ele passava compulsivamente a mão na testa. Ele me pedia calma, mas estava desesperado. Eu queria falar qualquer coisa, agradecer, queria amaldiçoar a dor no meu peito, mas não consegui dizer nada. Foi com muito esforço que eu consegui dizer “desculpa”. Eu queria dizer algo como “desculpa por ter te atrapalhado, te tirado do seu caminho, e obrigado por me socorrer”, mas a frase não saiu inteira.
            Quantas mil palavras existem num dicionário? Quão grande é o nosso vocabulário? E tudo que eu consegui dizer foi “desculpa”. Sei lá quantos livros lidos, com nível superior de escolaridade, advogado, e tudo que eu consigo falar é “desculpa”.
Ao escutar aquilo o rapaz me segurou no ombro e disse:
            – Tudo que você tem que fazer é ficar calmo, o pior já passou. Vai dar tudo certo, fica calmo.
Eu fico me perguntado como aquele rapaz está hoje. Fico pensando em como a maioria das pessoas nem olha para você ou pára pra dar bom dia e como ele saiu do rumo dele, se enfiou num táxi e me acompanhou até o hospital. Eu me lembro da voz dele me dizendo pra ficar calmo e que tudo ia dar certo, me lembro de como ele segurou meu ombro quando eu pedi desculpas e penso que aquele podia ser o filho que eu nunca tive.
Às vezes imagino como seria se eu tivesse sobrevivido, talvez eu me encontrasse com ele e com o motorista depois que me recuperasse e então eu poderia agradecê-los por ter me levado para o hospital. Eu agradeceria o motorista por ter desviado de todos aqueles carros, por ter infringido a velocidade permitida, ter andando um bom pedaço de uma rua na contra mão e quase ter atropelado um cachorro na tentativa de me salvar. Se eu tivesse sobrevivido eu poderia ao menos saber o nome deles. Mas no fim isso não me leva a lugar nenhum, eu estou morto.
Quando o motorista subiu com o táxi na calçada do hospital e parou na porta com uma freada brusca o rapaz abriu a porta do carro e logo em seguida o motorista já estava ajudando a me carregar para dentro do hospital. Eu me senti um completo inútil sendo carregado pelos dois. E nessa hora as coisas começaram a ficar confusas. Eu senti os médicos, enfermeiros, ou sei lá que gente era aquela me deitando numa maca e senti minha camisa imaculadamente branca sendo puxada. Pela última vez o rapaz me pediu para ficar calmo e disse que ia dar tudo certo, e sobre o ombro dele eu vi o rosto do motorista, ele acenava a cabeça positivamente confirmando que tudo ia dar certo. Mas seja qual for o método que os médicos iam usar para me tratar já era tarde demais. Eu não agüentei.
Depois disso tudo eu vim parar aqui, nessa sala de espera por sei lá o quê. Já gastei tempo pensando em como foi o meu funeral, que fim levou meu apartamento, em como minha mãe e minha família reagiu à notícia, imaginei várias maneiras de como a notícia da minha morte chegou até eles. No fim isso acaba virando uma espécie de entretenimento, um meio de me manter ocupado. Então eu continuo aqui, lembrando que tudo aconteceu numa quinta-feira estúpida, tão ordinária como todas as quintas-feiras podem ser...