domingo, 21 de agosto de 2011

TRÊS VEZES MORTO


Conto mórbido e inspirado em uma música dos Stones que recebeu menção honrosa no III Concurso Claudionor Ribeiro de Contos


          O barulho da sirene me mantém acordado, um grito contínuo que não me deixa dormir. Eu deveria estar sentindo dor, mas eu não sinto nada, apenas sei que a dor está ali. Saber é diferente de sentir.
Levanto um pouco a cabeça na tentativa de ver o estrago, mas tudo o que eu vejo é que um velho está sentado do meu lado segurando a minha mão. Ele me lança um olhar complacente e não diz nenhuma palavra, mas eu sei que ele compreende tudo e conhece todos os passos que foram necessários para me colocar dentro daquela ambulância. E em toda a sua benevolência ele não me julga, embora ele saiba tudo que eu fiz.
O toque da mão dele na minha é todo contato humano que já existiu, mas é completamente desprovido de calor humano. As linhas em seu rosto contam uma história que eu nunca vou conhecer.
“Você entende?”, ele me pergunta sem proferir qualquer palavra.
Eu respondo que sim, eu entendo. Eu entendo que esta é minha última noite e que a corrida de ambulância é meu último passeio. Antes de o sol nascer de novo eu já vou ter partido, este é meu fim.
Mais uma vez sem recorrer às palavras, ele me pergunta se eu sei o que é a morte. Eu respondo que sempre achei que morte é quando você deixa de ser o que é e passa a ser qualquer outra coisa. O velho acena que sim com a cabeça. Ele sabe o que eu sei.
E eu sei que todo mundo morre. Alguns morrem um pouco a cada dia e outros, tudo de uma vez. Eu ia experimentando a morte dos dois jeitos.
           Comecei a morrer há alguns anos, quando arrumei um trabalho que odiava. O serviço era bom, salário razoável, a empresa muito respeitada e eu odiava o meu trabalho.
Mas a vida é assim mesmo, não é? É isso que é ser adulto e responsável. Ou pelo menos era o que eu acreditava que era.
            O trabalho que eu odiava foi me consumindo e me transformando aos poucos, eu só era eu mesmo no meu tempo livre. Eu vivia para os fins de semana e feriados, só depois do horário comercial da sexta-feira é que eu me sentia vivo. E quando eu vivia, eu tinha que viver ao máximo. Quarenta e oito horas para estar vivo, e tudo o que pudesse potencializar a aventura de estar vivo antes do monstro da segunda-feira chegar para me matar era bem-vindo.
Acredite em mim, você pode fugir de si mesmo para sempre, basta você preencher seu tempo com tudo aquilo que não é sobre você. Existem lugares com som tão alto que você não consegue escutar seus próprios pensamentos, substâncias que entorpecem seus sentidos a ponto de nenhum deles conseguir perceber a vida que você leva, e há todo o tipo de estimulo para você correr desesperadamente atrás daquilo que você não precisa e não tem certeza se realmente quer. Está tudo aí ao seu alcance, fácil acesso. Na dose certa você vai se dissolvendo aos poucos e nem percebe.
O único problema é que esse tipo de coisa pode te matar.
Comigo aconteceu isso, eu morri. Fui morrendo quando os meses foram passando e se transformaram em um ano e depois um ano e meio. Eu deixei de odiar o meu trabalho e passei a me odiar por me submeter a algo que eu detestava tanto. Ansiar pela sexta-feira à noite não era mais o bastante, meu tempo vivo sempre acabava tão rápido e as horas em que eu não estava fugindo pareciam se arrastar cada vez mais, cada vez mais lentas. Então eu me perguntei por que esperar até sexta-feira à noite e comecei a providenciar doses de fim de semana para curar a ressaca na segunda-feira, passei a encarar a terça-feira à noite como sexta e quarta-feira como meu feriado particular. Até que chegou um ponto em que eu não era mais eu em dia nenhum, eu era a fuga de mim mesmo em tempo integral.
E de repente eu me vi deitado num leito de hospital e me perguntei o que eu estava fazendo ali. O velho estava sentado em uma cadeira próxima à cama, foi ele quem respondeu minha pergunta.
As faixas amarelas pintadas sobre o asfalto preto – ele falou daquele jeito dele, sem palavras.
E eu me lembrei de tudo.
Eu estava bêbado no meu carro, dirigindo por uma estrada – que estrada era aquela é o tipo de informação que agora não tem mais importância. Eu só queria continuar dirigindo.
O rádio do carro estava ligado e eu via o som que saia dos alto-falantes como ondas, que saiam se contorcendo das caixas de som, se curvavam quando encontravam algum obstáculo e então seguiam se dissipando.
Nem perdi meu tempo querendo saber por que eu estava vendo aquilo ou por que eu nunca tinha visto aquilo antes. Talvez eu nunca tivesse reparado. E entretido com as imagens que se moviam conforme a música eu me atrapalhei em uma troca de marcha.
O motor do carro morreu, eu tentei dar a partida de novo e o carro engasgou. Outra tentativa e o mesmo resultado. Eu saí do carro e abri o capô, olhei para aquele monte de peças e cabos sem saber por que é que eu tinha me dado ao trabalho de fazer aquilo – eu nunca entendi nada de mecânica.
Voltei para dentro do carro e girei a chave na ignição mais uma vez, veio o mesmo som engasgado. O carro não ia pegar mesmo e eu estava ali no meio do nada.
Por mais um tempo me deixei entreter pelas ondas de som, mas acabei ficando impaciente. Então saí do carro e comecei a andar, só andar.
Quando me dei conta estava andando sobre aquelas duas faixas amarelas que separam uma pista da outra. E era reconfortante a sensação de ter uma direção a seguir, tudo o que eu tinha que fazer era colocar um pé na frente do outro e continuar em cima da linha. Eu gostei da simplicidade daquilo. Todo o resto era confuso e complicado, mas ali naquele momento tudo o que me interessava era o contraste dos meus sapatos pretos sobre a faixa amarela pintada no chão.
            Para onde eu estava indo? Por quanto tempo eu caminhei sobre aquelas linhas? Até onde eu chegaria se aquele carro não tivesse me atingido? Eu não sei, e isso pouco importa agora.
          Um caminhão que vinha na direção oposta a que eu seguia teve que desviar e seguir pelo acostamento para não me atingir. Eu vi as ondas do som dos pneus se enroscando uma nas outras e então se espalhando pelo asfalto quando o caminhão desviou. Depois de um tempo um carro apareceu do nada e buzinou, com as ondas do som da buzina se dissipando para todos os lados.
            Eu segui andando sobre as faixas, até que numa curva vi dois faróis vindo para cima de mim e depois não vi mais nada.
            E então eu estava na ambulância. Então eu me vi no leito do hospital.
          Uma enfermeira entrou no quarto. Ela sorri para mim, é aquele tipo de sorriso que diz que vai ficar tudo bem e que mesmo sendo uma mentira aquilo te faz bem. Sustentando sua expressão tranqüilizadora ela me aplica uma injeção.
Eu não senti a agulha cravada na minha pele, a única coisa que senti foi o efeito. A injeção foi tão libertadora quanto todas as fugas, aos poucos me privou dos meus sentidos que diziam que eu fiz tudo errado.
            Mais um sorriso mentindo que tudo ia ficar bem e a enfermeira foi embora. E mais uma vez estamos só eu, o velho e a certeza da minha morte.
            Dentro do quarto do hospital, entre paredes pintadas de um branco impessoal e o sob o zumbido de lâmpadas fluorescentes, o tempo parece estagnado. Mas isso é só impressão, na verdade ele está correndo como sempre esteve.
Como eu sabia que ia acontecer, antes do dia amanhecer o velho se levanta da cadeira e acena para mim. Chegou a hora. Ele me entrega meu casaco – não o casaco ensangüentado e amarrotado que eu vestia quanto me trouxeram para o hospital, mas um casaco limpo, o mesmo casaco só que em perfeitas condições. Ele me ajuda a vestir o casaco, eu me levanto da cama e nós dois seguimos para fora do quarto.
A mão do velho repousa no meu ombro, protetora e me encorajando, enquanto andamos pelo corredor. E nesta hora eu entendo que o velho também está morrendo, ele está morrendo naquele exato momento, enquanto andamos lado a lado. Aquele velho é tudo o que eu poderia ter sido, todas as experiências que eu viveria se continuasse vivo, o velho morre junto comigo porque aquele velho é tudo o que eu nunca vou ser. As linhas no rosto dele contam uma história que eu nunca vou conhecer, uma história não vivida.
          A cada passo sinto pesar mais e mais a constatação de que vou permanecer para sempre jovem, para sempre preso na apatia antes dos trinta. Eu morri quando desisti de mim mesmo, eu morri quando aquele carro me atropelou e eu morri quando perdi a chance de viver tudo o que poderia ter sido.

Um comentário:

  1. meu, essas descrições de morte, beira da morte, não sei como vc consegue fazer assim tão de boa... se eu qro escrever algo assim, tenho q me colocar no lugar do personagem, tenho q imaginar e acreditar q qro me matar, aí consigo escrever, mas do modo como vc faz, parece tão simples... depois vc não sabe pq sou teu fã...

    ResponderExcluir